29.11.09

Criar igreja e se livrar de imposto custa R$ 418

A Michele Santi, da comunidade Ateus e Agnósticos, postou uma reportagem fresquinha de Hélio Schwartsman, da equipe de articulistas da Folha, mostra que bastam cinco dias úteis e R$ 418,42 para criar uma igreja no Brasil com CNPJ, conta bancária e direito de realizar aplicações financeiras livres de IR (Imposto de Renda) e de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras).

A reportagem, publicada neste domingo na Folha (íntegra logo abaixo com grifos meus), informa ainda que não existem requisitos teológicos ou doutrinários para a constituição de uma igreja nem se exige um número mínimo de fiéis — basta o registro de sua assembleia de fundação e estatuto social num cartório.

Além de IR e IOF, igrejas estão dispensadas de IPTU (imóveis urbanos), ITR (imóveis rurais), IPVA (veículos) e ISS (serviços), entre outros impostos. Se a Lei Geral das Religiões, já aprovada pela Câmara e aguardando votação no Senado, se materializar, mais vantagens serão incorporadas.

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Bastaram dois dias úteis e R$ 218,42 em despesas de cartório para a reportagem da Folha criar uma igreja. Com mais três dias e R$ 200, a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio já tinha CNPJ, o que permitiu aos seus três fundadores abrir uma conta bancária e realizar aplicações financeiras livres de IR (Imposto de Renda) e de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras).

Seria um crime perfeito, se a prática não estivesse totalmente dentro da lei. Não existem requisitos teológicos ou doutrinários para a constituição de uma igreja. Tampouco se exige um número mínimo de fiéis. Basta o registro de sua assembleia de fundação e estatuto social num cartório. Melhor ainda, o Estado está legalmente impedido de negar-lhes fé. Como reza o parágrafo 1º do artigo 44 do Código Civil: "São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento".

A autonomia de cada instituição religiosa é quase total. Desde que seus estatutos não afrontem nenhuma lei do país e sigam uma estrutura jurídica assemelhada à das associações civis, os templos podem tudo.

A Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, por exemplo, pode sem muito exagero ser descrita como uma monarquia absolutista e hereditária. Nesse quesito, ela segue os passos da Igreja da Inglaterra (anglicana), que tem como "supremo governador" o monarca britânico.

Livrar-se de tributos é a principal vantagem material da abertura de uma igreja. Nos termos do artigo 150, VI, b da Constituição, templos de qualquer culto são imunes a impostos que incidam sobre o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com suas finalidades essenciais.

Isso significa que, além de IR e IOF, igrejas estão dispensadas de IPTU (imóveis urbanos), ITR (imóveis rurais), IPVA (veículos), ISS (serviços), para citar só alguns dos vários "Is" que assombram a vida dos contribuintes brasileiros. A única condição é que todos os bens estejam em nome do templo e que se relacionem a suas finalidades essenciais — as quais são definidas pela própria igreja.

O caso do ICMS é um pouco mais polêmico. A doutrina e a jurisprudência não são uniformes. Em alguns Estados, como São Paulo, o imposto é cobrado, mas em outros, como o Rio de Janeiro e Paraná, por força de legislação estadual, igrejas não recolhem o ICMS nem sobre as contas de água, luz, gás e telefone que pagam.

Certos autores entendem que associações religiosas, por analogia com o disposto para outras associações civis, estão legalmente proibidas de distribuir patrimônio ou renda a seus controladores. Mas nada impede — aliás é quase uma praxe — que seus diretores sejam também sacerdotes, hipótese em que podem perfeitamente receber proventos.

A questão fiscal não é o único benefício da empreitada. Cada culto determina livremente quem são seus ministros religiosos e, uma vez escolhidos, eles gozam de privilégios como a isenção do serviço militar obrigatório (CF, art. 143) e o direito a prisão especial (Código de Processo Penal, art. 295).

Na dúvida, os filhos varões dos sócios-fundadores da Igreja Heliocêntrica foram sagrados minissacerdotes. Neste caso, o modelo inspirador foi o budismo tibetano, cujos Dalai Lamas (a reencarnação do lama anterior) são escolhidos ainda na infância.
Voltando ao Brasil, há até o caso de cultos religiosos que obtiveram licença especial do poder público para consumir ritualisticamente drogas alucinógenas.

Desde os anos 80, integrantes de igrejas como Santo Daime, União do Vegetal, A Barquinha estão autorizados pelo Ministério da Justiça a cultivar, transportar e ingerir os vegetais utilizados na preparação do chá ayahuasca — proibido para quem não é membro de uma dessas igrejas.

Se a Lei Geral das Religiões, já aprovada pela Câmara e aguardando votação no Senado, se materializar, mais vantagens serão incorporadas. Templos de qualquer culto poderão, por exemplo, reivindicar apoio do Estado na preservação de seus bens, que gozarão de proteção especial contra desapropriação e penhora.

O diploma também reforça disposições relativas ao ensino religioso. Em princípio, a Igreja Heliocêntrica poderá exigir igualdade de representação, ou seja, que o Estado contrate professores de heliocentrismo.


Colaboraram os bispos CLAUDIO ANGELO, editor de Ciência, e RAFAEL GARCIA, da Reportagem Local

28.11.09

Stanislaw Ponte Preta

Um dos maiores cronistas que esse país já leu, Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto foi/é profundo conhecedor da gente brasileira, sobretudo daqueles que moravam na capital da Guanabara, do lado de cá da poça d'água. Uma pena que ele tenha ficado um pouco de lado da juventude desse tempo em que vivemos. Sérgio Porto constrói estilo.

Lembro desse ter sido um dos primeiros textos dele que eu li na época do colégio e desde então não o larguei mais. Recomendo todos os livros de sua autoria, sobretudo o FEBEAPÁ, famoso Festival de Besteiras que Assolam o País. Tirando o domínio da verve, muito aquem da grandiosidade do sobrinho da ermitã da Boca do Mato, esse blog não deixa de ser uma espécie de FEBEAPÁ da religião. É muito cocoroca dizendo bobagem pela aí...

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O Milagre

Naquela pequena cidade as romarias começaram quando correu o boato do milagre. É sempre assim. Começa com um simples boato, mas logo o povo - sofredor, coitadinho, e pronto pra acreditar em algo capaz de minorar sua perene chateação - passa a torcer para que o boato se transforme numa realidade, para poder fazer do milagre a sua esperança.

Dizia-se que ali vivera um vigário muito piedoso, homem bom, tranquilo, amigo da gente simples, que fora em vida um misto de sacerdote, conselheiro, médico, financiador dos necessidades e até advogado dos pobres, nas suas eternas questões com os poderosos. Fora, enfim, um sacerdote na expressão do termo: fizera de sua vida um apostolado.

Um dia o vigário morreu. Ficou a saudade morando com a gente do lugar. E era em sinal de reconhecimento que conservavam o quarto onde ele vivera, tal e qual o deixara. Era um quartinho modesto, atrás da venda. Um catre (porque em histórias assim a cama do personagem chama-se catre), uma cadeira, um armário tosco, alguns livros. O quarto do vigário ficou sendo uma espécie de monumento à sua memória, já que a Prefeitura local não tinha verba para erguer sua estátua.

E foi quando um dia...ou melhor, uma noite, deu-se o milagre. No quarto dos fundos da venda, no quarto que fora do padre, na mesma hora em que o padre costumava acender uma vela para ler seu breviário, apareceu uma vela acesa.

— Milagre!!! — quiseram todos.

E milagre ficou sendo, porque uma senhora que tinha o filho doente, logo se ajelhou do lado de fora do quarto, junto à janela, e pediu pela criança. Ao chegar em casa, depois do pedido - conta-se - a senhora encontrou o filho brincando, fagueiro.

— Milagre!!! — repetiram todos.

E o griito de "Milagre!!!" reboou por sobre montes e rios, vales e florestas, indo soar no ouvido de outras gentes, de outros povoados. E logo começaram as romarias. Vinha gente de longe pedir! Chegava povo de tudo quanto é canto e ficava ali plantado, junto à janela, aguardando a luz da vela. Outros padres, coronéis, até deputados, para oficializar o milagre. E quando eram mais ou menos seis da tarde, hora em que o bondoso sacerdote costumava acender sua vela...a vela se acendia e começavam as orações. Ricos e pobres, doentes e saudáveis, homens e mulheres, civis e militares caiam de joelhos, pedindo.

Com o passar do tempo a coisa arrefeceu. Muitos foram os casos de doenças curadas, de heranças conseguidas, de triunfos os mais diversos. Mas, como tudo passa, depois de alguns anos passaram também as romarias. Foi diminuindo a fama do milagre e ficou, apenas, mais folclore na lembrança do povo.

O lugarejo não mudou nada. Continua igualzinho como era, e ainda existe, atrás da venda, o quarto que fora do padre. Passamos outro dia por lá. Entramos na venda e pedimos ao português, seu dono, que vive há muitos anos atrás do balcão, a roubar no peso, que nos servisse uma cerveja.

O português, então, berrou para um pretinho, que arrumava latas de goiabada numa prateleira:

— Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês!

Achamos o nome engraçado. Qual o padrinho que pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o português explicou que não, que o nome do pretinho era Sebastião. Milagre era apelido.

— E por quê? - perguntamos.

— Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do padre.
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PONTE PRETA, Stanislaw
Tia Zulmira e Eu
Editora Agir
224 pág.
2007
ISBN: 9788522007370

19.11.09

Resumão da PLC 122/2006

O texto abaixo é uma compilação das partes mais importantes para a compreensão do conteúdo do PROJETO DE LEI DA CÂMARA, Nº 122 de 2006, que criminaliza a homofobia e que está em tramitação no Senado Federal. O texto na íntegra pode ser baixado nesse link.

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O atual conceito de cidadania está intimamente ligado aos direitos à liberdade e à igualdade, bem como à idéia de que a organização do Estado e da sociedade deve representar o conjunto das forças sociais e se estruturar a partir da mobilização política dos cidadãos e cidadãs. (...)

Segundo a médica, psicanalista e mestre em Antropologia Elizabeth Zambramo, a regulação do sexo e da sexualidade em nossa sociedade vem sendo feita, predominantemente, por algumas instituições como a Igreja, o Judiciário e a Medicina. Historicamente, essas instituições têm limitado a diversidade sexual à existência de apenas dois sexos, o homem e a mulher; dois gêneros – o masculino e o feminino; e a uma única forma considerada “correta” de eles se relacionarem, a heterossexualidade. Dessa forma, o que escapa ao “padrão de normalidade” assim instituído é tratado como pecado, como crime ou como doença, conforme a instituição reguladora acionada. (...) O Substitutivo que ora apresentamos a essa douta Comissão parte de quatro pressupostos:

1. Não discriminação: a Constituição Federal em seu art. 3º, IV, estabelece que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Não bastasse, o art. 5º, caput, preordena que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Portanto, nossa Magna Carta não tolera qualquer modalidade de discriminação. Assim, se outras formas de preconceito e discriminação são criminalizadas, por que não a homofobia?

2. Intervenção mínima para um direito penal eficaz: na contramão das correntes conservadoras que pregam um direito penal máximo, um Estado Penal, sustentamos a idéia de que o direito penal, por ser o mais gravoso meio de controle social, deve ser usado sempre em último caso (ultima ratio) e visando tão somente ao interesse social. Nesse sentido, as condutas a serem criminalizadas devem ser apenas aquelas tidas como fundamentais. Ademais, os tipos penais (verbos que definem condutas) devem ser fechados e objetivos.

3. Simplicidade e clareza: o Substitutivo faz a nítida opção por uma redação simples, clara e direta, com pequenas modificações na Lei nº 7.716/1989– e no Código Penal.

4 O Substitutivo amplia o rol dos beneficiários da Lei nº 7.716/1989, que pude os crimes resultantes de preconceito e discriminação. Assim, o texto sugerido visa punir a discriminação ou preconceito de origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.

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Basicamente a PLC 122/2006 apenas deixa mais claro aquilo que já é regido pela nossa Constituição: que é proibido qualquer tipo de proconceito e discriminação, e propõe atribuição penal nesses crimes tipificados. Não deixa de ser "permitido" a pregação de conceitos anti-homossexual, presente na grande maioria das religiões, sobretudo nos três grandes monoteísmos do deserto. Em suma, os pastores, padres, mulás e rabinos ainda vão poder continuar pregar suas ideologias homofóbicas. O que vai ser crime é a obliteração dos direitos do cidadão por meio de uma descriminação de sua preferência sexual.

O que deixa uma pergunta: será que uma igreja poderia ser incriminada indiretamente como cúmplice no caso de uma acusação de preconceito ativo em primeiro grau por, exemplificando, um empresário que frequenta os bancos de uma religião que prega à demonização homossexual?

16.11.09

Ironia, sarcasmo e a arte perdida de interpretar textos

Gostaria realmente de entender porque a quase totalidade das pessoas não é capaz de perceber e lidar com a ironia e o sarcasmo. Seria por uma má formação escolar e portanto um não desenvolvimento pleno da faculdade da leitura clara? Ou talvez por causa da pressa em ler uma massa de palavras organizadas em parágrafos daí a precipitação ao tomar conclusões? Preguiça de digerir algo pouco maior que uma revista em quadrinhos infantil? E olha que nem precisa ser um texto megaelaborado, com referências litarárias ou cinematográficas remotas ou fora do eixo médio, mas quase sempre em exemplos triviais presentes em mídias de massa ordinárias.

Peguei esse texto no blog do Antônio Prata, colunista do Estadão. Os comentários logo abaixo são o que há de melhor na irrascibilidade de comentaristas na web. Acabo por achar que, sei lá, 90% das pessoas não estão preparadas para lidar com um volume tão grande de informação disponível na web, alheias que são aos meandros simples da comunicação moderna.

É de chorar.

Congruências



Catado do Chongas.